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HISTÓRIA  DA  MEDICINA: Evolução e Importância

 

Sebastião Silva Gusmão

A ciência suprema é a história, pois é a única obra construída pelos homens.

Vico. Principi de una Scienza Nuova, 1725

A palavra história tem duplo sentido: processo histórico (história), e narração e discussão desse processo (a disciplina História). O processo histórico começou com a emergência da cultura no princípio do período paleolítico, uma vez que, com o surgimento da cultura, o homem passou a transmitir condutas não herdadas geneticamente. Até o surgimento da cultura valia para os pré-hominídios a máxima expressa por Darwin na Origem das Espécies: “a herança é a lei”. Com o acúmulo progressivo da bagagem cultural torna-se cada vez mais evidente o velho provérbio árabe: “os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”.

O processo histórico, entretanto, se torna objeto da História só à medida que transmite ao historiador informação sobre si mesmo. A História tem suas origens remotas nas cronologias da Mesopotâmia e do Egito, nos relatos da Bíblia e nas Histórias de Heródoto (484-425 a.C.), o “pai da História”.  Heródoto foi o primeiro a usar a palavra história (do grego, historie: inquirição) no sentido de pesquisa e relatório ou exposição dessa pesquisa.

Da mesma forma, tem-se registro desde o Paleolítico, por meio da paleopatologia (estudo das enfermidades que podem ser demonstradas em restos humanos procedentes de épocas remotas), de doenças e de tratamento destas doenças (medicina primitiva pré-histórica), como a trepanação craniana. Também, os documentos da Mesopotâmia e do Egito registraram a evolução da medicina arcaica, baseada na magia e no empirismo. Já a medicina como ciência, baseada na interpretação natural da doença, surge somente no século V a.C com Hipócrates (c. 460 – 375 a.C).

A disciplina História, tratada a princípio como história universal, foi dividida por assuntos, em virtude do acúmulo de conhecimentos. A medicina, por sua importância e interesse, despertou a atenção do próprio Heródoto e de Hipócrates.  A História da Medicina é a reconstituição do passado da ciência médica. É tão antiga quanto as artes de Asclépio, deus da Medicina, e de Clio, musa da História. Suas raízes estão no século de Péricles (século V a.C.), que viu nascer a História de Heródoto, e a Medicina de Hipócrates. Da própria Coleção Hipocrática, uma das raras obras científicas do período pré-socrático conservada, consta a primeira obra escrita sobre História da Medicina, intitulada Da medicina antiga1, onde afirma: “na arte médica é fundamental o princípio de que as conquistas, que constituem o patrimônio do passado, devem servir de base às investigações do presente”.

Da medicina antiga1, colocada por Littré como o primeiro livro da coleção hipocrática, é tido por muitos como o mais importante desta coleção. Nela, Hipócrates critica o racionalismo a priori, propõe seu método e traça a origem e evolução da medicina. A crítica é dirigida contra aqueles que, partindo inicialmente de uma hipótese, derivam dela uma causa única para todas as doenças. Da mesma forma como os filósofos pré-socráticos partiam de um pequeno número de elementos fundamentais para explicar a diversidade do mundo, muitos médicos do século V a.C. pretendiam fundar a arte da medicina sobre um ou dois princípios que sistematizam toda a patologia. Assim, Hipócrates critica a medicina “filosófica” e afirma a autonomia da arte médica em relação à filosofia. Na verdade, a medicina e a filosofia são as primeiras disciplinas a se libertarem da religião. A seguir, a medicina e a matemática se tornam, por sua vez, independentes da filosofia.

A partir desta crítica Hipócrates expõe seu método: a medicina deve apoiar-se sobre observações, sobre fatos, e afirma que o corpo humano, para ser conhecido, deve ser estudado em relação com o meio ambiente. O único caminho para a compreensão da natureza do homem é a observação utilizada pelos médicos, e não o método a priori dos cosmólogos.

A seguir, Hipócrates traça a origem e a evolução da medicina a partir da evolução da alimentação humana. O nascimento da medicina se confunde com a descoberta do regime alimentar. É o desenvolvimento da culinária adaptada aos diferentes tipos de doentes que marca o início da medicina propriamente dita. A medicina primitiva seria, portanto, uma espécie de culinária personalizada. Mas ela é precedida do desenvolvimento da alimentação dos indivíduos sadios, ou seja, da culinária como tal, que consiste em adaptar o alimento à natureza humana por meio de múltiplos preparos, como o cozimento e a mistura. Esta dupla descoberta permitiu a passagem da vida selvagem, quando o homem se alimentava como os animais, para a vida civilizada.  É        neste passado que se encontra o ponto de partida da medicina. A simples hipótese em substituição à realidade observada é erro que transforma a ciência em especulação sem fundamento. Desta forma, em conformidade com o pensamento do século V a.C, Hipócrates coloca a medicina em bases racionais e a atribui aos homens, e não aos deuses, como relatado no Prometeu acorrentado de Ésquilo (525-456 a.C.).

Durante o período clássico (Grécia e Império Romano) e através de Galeno (130-200), a medicina continuou a se basear em Hipócrates. A autoridade de Hipócrates e Galeno durante quase vinte séculos concentrará o interesse histórico no âmbito da medicina.

Na Idade Média (séculos V a XIV) a História passou a ser admitida como meio de evidenciar a realização dos planos divinos no processo histórico. No Renascimento (séculos XV e XVI), os historiadores substituíram a revelação de desígnios da Providência Divina pela narração objetiva de acontecimentos significativos para a educação dos homens. A historiografia médica muda sob a influência  do pensamento filosófico e das realizações da ciência e da técnica no século XVII. Aparece, então, o primeiro manual moderno de história da medicina ocidental, redigido em francês pelo médico genebrino Daniel Le Clerc (1662-1728)2. É reconhecido como o Pai da História da Medicina. Este autor recolhe com diligência os fatos por meio de documentos confiáveis e se propõe  aplicar à pesquisa médico-histórica os preceitos metodológicos de Francis Bacon (1561-1626). Tenta a periodização do assunto e procura estabelecer conexões, descobrir regularidades, reconhecer associações e tirar conclusões gerais.

A História propriamente moderna começa no século XVIII, com a primeira tentativa objetiva de compreensão do processo histórico por Giambattista Vico (1688-1744) com os seus Principi de una Scienza Nuova3, publicado em 1725. Até esta data, acreditava-se que as idéias eram universais e imutáveis. Descarte, no Discours de la Métode (1636), insistira na universalidade, uniformidade e constância da razão do homem. O mundo da mente estava eternamente separado do mundo físico da experiência e da história. Vico ataca o cartesianismo e lança a idéia revolucionária de que as idéias do homem eram sintomas da experiência variável. Conseqüentemente, o processo pelo qual os homens adquiriam conhecimento não seria uniformemente racional, e esse conhecimento não seria universal nem imutável. A novidade fundamental introduzida por Vico foi o tratamento de idéias e instituições como meros sintomas de experiência social e a interpretação da razão do homem como produto de evolução gradual. Mais tarde, Marx (1818-1883), que rendeu homenagens a Vico, afirmaria que a existência social, condicionada pelo modo de produção, determina a consciência humana.

Vico postulou que a história é feita pelo homem, o qual muda o ambiente e, com ele, a si mesmo, sendo o desenvolvimento das instituições e da mente humana aspectos mutuamente condicionantes do mesmo processo. Para Vico “a verdade e o feito são idênticos” e como conseqüência o homem não pode entender inteiramente sua existência, mas pode entender aquilo que ele criou. Tudo aquilo que o homem sente, pensa e produz, em determinado tempo, mantém vinculações entre si, formando unidades estruturais que se modificam com o correr dos tempos. As idéias e realizações do homem são, portanto, manifestações da experiência social, e, a partir do estudo de tais expressões em sua variedade, o historiador pode explicar os acontecimentos históricos.  Ele via a sociedade como produto de sua literatura, mito, linguagem, lei, arte, forma de governo, religião e filosofia. Assim Vico inaugura a Filosofia da História, cuja característica predominante é a tentativa de elucidar o sentido último e o objetivo da História ou de descobrir as leis que regem o processo histórico.

 O pensamento de Vico mudou a historiografia do século XIX. Até então, a História fora escrita como uma série de biografias de grandes homens ou como a crônica de acontecimentos notáveis, sem enfoque crítico. Da mesma forma, a História da Medicina era principalmente a suma dos escritos dos autores médicos. Era primariamente medicina e a abordagem do passado não era crítica, histórica, mas médica. No começo do século XIX a medicina antiga ainda estava viva. Por mais de dois mil anos os escritos médicos antigos foram consultados como fonte imediata de prática médica. Assim, em 1839, Littré, no prefácio de sua tradução dos textos hipocráticos, escreveu que o propósito de tal tradução era tornar Hipócrates acessível aos médicos de forma que fosse lido como autor contemporâneo.

 No século XIX, os historiadores adotaram amplamente o conceito de que o desenvolvimento da sociedade sofre influência de seu contexto material e cultural, que dá aos fatos históricos sua base comum, sua continuidade e sua coerência. Ao mesmo tempo, o campo dos estudos históricos alargou-se consideravelmente. A História não se limitava apenas ao estudo das disputas dinásticas, das guerras e dos tratados de paz. Ela tornou-se a história da civilização, a história do homem em sua luta para adaptar-se ao mundo.

 A historiografia médica recebeu o efeito favorável desta mudança. Assim, no século XIX, a união da História e da Medicina veio constituir nova ciência, a História da Medicina, disciplina da História Geral. Os clássicos da medicina passaram a ser lidos não como fonte de informação para a prática médica, mas como documentos históricos para conhecer como os médicos antigos cuidavam das pessoas e quais eram as idéias que guiavam suas ações. A atitude em relação ao passado torna-se primariamente histórica.

A esta nova visão, Kurt Sprengel, professor de patologia e poliglota de saber enciclopédico, adiciona o pensamento crítico de Kant (1724-1804), e transforma a História da Medicina em disciplina verdadeiramente moderna. Em sua abordagem, a História da Medicina torna-se primariamente História. Na obra Ensaio sobre a história pragmática da medicina4, notável tanto pela massa de informações como pelo encadeamento das idéias e dos acontecimentos históricos, Sprengel afirma que a História da Medicina “não tem por objetivo relatar a vida dos médicos célebres, nem enumerar e criticar as obras sobre a arte de curar, mas procura examinar de forma mais particular os sistemas que dominaram, sucessivamente, os métodos sobre os quais se basearam o tratamento das doenças e as revoluções ocorridas nas teorias e na prática”.

A contribuição individual na História e na História da Medicina em particular é de grande significância, mas deve-se lembrar que o indivíduo é em grande parte produto de seu meio. Assim não se deve estudar o indivíduo e seu trabalho de forma isolada, mas deve-se investigar as forças que atuaram sobre ele.  A História da Medicina é muito mais que a história dos grandes médicos e seus escritos. A sucessão tradicional da biografia dos grandes médicos é substituída na obra de Sprengel pela apresentação das diferentes escolas de pensamento e pela procura de filiações intelectuais. A reconstituição histórica das transformações que ocorreram na teoria e na prática médica baseia-se nas relações que unem os conhecimentos médicos à filosofia, à ciência e à técnica. Ele dá à História da Medicina caráter utilitário e filosófico.

 

Utilitário no sentido de ajudar a compreensão do presente e filosófico no sentido de demonstrar que em medicina o progresso é uma necessidade interna e que a evolução histórica tem um sentido. Este sentido da história ele adota do idealismo de seu contemporâneo Hegel (1770 - 1831), que acredita na existência de um sentido escondido da História, uma ordem superior que liga o passado, o presente e o futuro. O desenvolvimento da medicina, como o desenvolvimento do espírito humano, seria a manifestação progressiva de uma sorte de razão absoluta. Para Sprengel, a filosofia explica a medicina, e o aperfeiçoamento de uma é inseparável da evolução da outra.

Na segunda metade do século XIX a História da Medicina tornou-se uma disciplina crítica, com a colaboração interdisciplinar de historiadores, filologistas, filósofos e médicos. Os problemas médicos passam a ser vistos de forma dinâmica e como resultado das idéias e instituições geradas pela estrutura material e cultural de dado período. Assim, as teorias médicas que norteiam a prática profissional são vistas como aspecto do conhecimento geral de determinado período, como produtos da influência da concepção filosófica predominante. O estudo da gênese e da evolução das doutrinas médicas é, por assim dizer, a filosofia da História da Medicina.

Pode-se comprovar, nos diferentes períodos históricos, como se refletem na arte de curar as doutrinas médicas e como, nestas, se representa a ideologia geral da época, suas concepções filosóficas e religiosas, produzindo-se a explicação da doença e, consequentemente, os métodos terapêuticos. Para compreender estas interações torna-se necessário conhecer, além dos fatos médicos, as demais manifestações da civilização, especialmente a filosofia.

 

A interpretação das teorias médicas como produto de seu tempo permite compreender: a interpretação da doença como fenômeno sobrenatural e o caráter mágico-religioso da medicina arcaica (Mesopotâmia e Egito) determinados pela concepção mítica do mundo; a interpretação da doença em termos de causas naturais racionalmente inteligíveis pelos médicos gregos como conseqüência da abordagem racional do mundo pelos filósofos jônicos; o pensamento teológico dos médicos medievais derivado da filosofia escolástica; a significação do movimento anatômico (Vesalius, Da Vinci) durante a Renascença (1453-1600) como conseqüência do nascer de novo da arte e da cultura da Grécia clássica; a medicina baseada nas ciências naturais, que se desenvolve com o nascimento da ciência moderna no século XVII; a medicina classificatória (classificação das doenças a partir dos sintomas) do século XVIII como conseqüência da forma de organização do conhecimento científico determinada pelo racionalismo cartesiano; e a concepção anátomo-clínica (Morgagni e Bichat) da medicina moderna conseqüente ao empirismo e ao positivismo do século XIX.  

Poucos historiadores do século XX seguem o ponto de vista clássico, relacionado à filosofia de Hegel, que vê na Filosofia da História o meio de discernir sentido e propósito no processo histórico. A maioria admite que a História não tem objetivos pré-escolhidos, nem é orientada por leis, semelhantes às leis naturais. O processo histórico não é conduzido por forças transcendentais, sendo determinado por fatores reais (as condições naturais e materiais) e ideais (a cultura da sociedade) e pelo acaso (o modo aleatório como outros fatores se combinam). A Filosofia da História é vista como a investigação das condições em que a indagação histórica é possível e o estudo das condições a que está sujeito o processo histórico.

Sob a influência desta última corrente, ocorreu na primeira metade do século XX, principalmente na Alemanha, com Sudhoff (1853-1938) grande avanço nos estudos da História da Medicina.  Sudhoff criou a Cátedra de História da Medicina e fundou o primeiro Instituto de História da Medicina, transformando Leipzig no grande centro de estudo desta disciplina.

Em 1929, Bloch e Febre iniciam um movimento de renovação da historiografia francesa que está na base do que hoje se chama História Nova (Nouvelle Histoire). Esta corrente  caracteriza-se pela visão global, com ênfase no uso das mais amplas fontes de informação e a necessária colaboração interdisciplinar, e pela abordagem de ”história como problema”. Critica a atitude clássica de considerar os eventos, protagonizados por grandes nomes e heróis, como base da História e propõe uma História apoiada nas ciências sociais. A História passa a ser entendida como a ciência dos homens no tempo, sendo importante o presente para a compreensão do passado e vice-versa. O conhecimento do passado é coisa em progresso, que se transforma e aperfeiçoa.  A História, feita de fatos e interpretação dos mesmos, é transitória, pois novos fatos são acrescentados e a interpretação muda. Por tal motivo, não existe a história definitiva. Assim, Carr5 define a História como “um processo contínuo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo sem fim entre o presente e o passado”.

Sigerist (1891-1957), discípulo de Sudhoff, destacou os aspectos sociais da medicina e escreveu a obra magna da História da Medicina, A History of Medicine6, na qual examina o conjunto dos problemas geográficos, históricos, econômicos e culturais que determinam a teoria e a prática médica.

Este renascimento da ciência da História da Medicina na Alemanha irradiou-ser com a criação da disciplina nas universidades da Europa e da América.

No Brasil, em 1832 foi criada a Cadeira de Higiene e História da Medicina nas duas Escolas Médicas do Império, sendo esta disciplina lecionada até 1891, quando foi extinta pela reforma republicana. Várias vozes se levantaram pela restauração de seu ensino. Em 1947, foi proposta por Ivolino de Vasconcellos (1917-1995), grande batalhador pelos estudos de História da Medicina em nosso país, a Cátedra de História da Medicina da Faculdade Nacional de Medicina. Em 1951 organizou e presidiu o Primeiro Congresso Brasileiro de História da Medicina.

Na atualidade sobressaem os nomes de Pedro Salles (1904 – 1998), Lycurgo Santos Filho (1910 - 1998) e Carlos da Silva Lacaz (1915-2002).

Pedro Salles, em sua História da Medicina no Brasil7, traça a até hoje melhor visão de conjunto da história da arte de Asclépio em nosso país. Em Notas Sobre a História da Medicina em Belo Horizonte8, estuda a origem e a evolução da medicina nesta cidade, antevendo, nos dizeres do prefaciador Pedro Nava, o futuro científico do Estado de Minas Gerais.

Lycurgo Santos Filho é considerado o tratadista da história médica brasileira com a magistral obra História Geral da medicina brasileira 9.

Lacaz estimulou o estudo da História da Medicina em nosso meio, publicou obras sobre o assunto, destacando-se Vultos da Medicina Brasileira10, fundou o Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e foi membro fundador e primeiro presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina.

A História da Medicina, sendo uma disciplina histórica, usa os métodos gerais da pesquisa histórica comum a outras disciplinas históricas, mas é uma história especial, tendo também seus métodos próprios e seus problemas. Ela estuda a saúde e a doença através dos tempos, as condições para a saúde e a doença e a história das atividades humanas que têm por objetivo promover a saúde, prevenir as doenças e curar o doente.

As condições gerais de saúde são determinadas primariamente por dois fatores, geografia e economia. A doença individual é resultado da hereditariedade e do ambiente. É relativamente fácil obter-se um apanhado do ambiente físico e social no qual o homem viveu nos diferentes períodos da história. Após este conhecimento, investiga-se o que foi feito para manter e promover a saúde e prevenir a doença.

As ações médicas originam-se de duas fontes, experiência e teoria. A experiência ensina que um tratamento determinado é eficaz, embora possa ser impossível explicar sua ação. Por outro lado, muitas ações terapêuticas resultam de idéias sobre a origem e natureza da doença. O tratamento será consideravelmente diferente segundo a doença seja vista como resultado de possessão por espírito demoníaco, punição por pecado cometido, distúrbio do balanço de humores hipotéticos ou alterações físico-químicas.

Por tal motivo, a História da Medicina não se interessa apenas pela ação dos médicos, mas também pelas idéias que os guiaram. Ela estuda os sistemas de medicina mágico, religioso, filosófico, teológico e científico. As teorias médicas representam um aspecto da civilização de determinado período, e para compreende-las é necessário conhecer as outras manifestações desta civilização, como filosofia, literatura, arte e música.

A reconstrução do passado na História da Medicina, como na História, é baseada em fontes. As fontes são descritas, datadas e, a seguir, interpretadas. A interpretação das fontes históricas em medicina é um complexo processo analítico que requer experiência e conhecimentos tanto de filologia como de história e medicina.

 As fontes podem ser diretas (esqueletos, múmias, instrumentos médicos, hospitais) e indiretas (literatura, ilustrações, tradição oral). Na investigação da História da Medicina os livros médicos constituem a principal fonte, mas o historiador deve consultar também os livros e documentos não médicos. Eles informam melhor que os livros médicos o significado da doença para o doente e como esta alterou sua vida.

A maioria dos médicos do século XX, influenciados pela valorização da técnica e pelo positivismo de Comte (1798-1857), passou a ver como inútil o conhecimento da História da Medicina. Porém, o desprezo aos princípios éticos e humanísticos, gerado por tal atitude, levou muitos a refletir sobre a necessidade do ensino da História da Medicina. Prova disso é a introdução desta disciplina em várias faculdades de medicina do país, a fundação em 1997 da Sociedade Brasileira de História da Medicina e o sucesso dos congressos anuais desta Sociedade.

Para que serve a História da Medicina? Teria que se responder antes à pergunta: qual a utilidade da História. Becker responde em seu livro “Every man his own historian” que fazer história parece ser preocupação universal entre todos os povos em todos os tempos. O seja, o homem é um ser histórico e sua existência tem uma natureza histórica. Nos definimos como indivíduo ou grupo por meio de nossa história.

Tal preocupação com a memória é especialmente realçada no ocidente. Como salienta Bloch11, a civilização ocidental, em conseqüência das heranças antiga e cristã, valoriza muito sua memória. Uma das maiores invenções gregas foi a idéia de história.  O cristianismo é uma religião de historiador. Outras religiões, especialmente o hinduísmo e o confucionismo, fundaram sua crença em uma mitologia exterior ao tempo humano. Os livros sagrados do cristianismo são livros de história, com episódios da vida terrestre de um Deus. As crenças do cristianismo são mais históricas do que filosóficas. Santo Agostinho em A Cidade de Deus (426) moldou o cristianismo num credo histórico e desenvolveu uma teoria da história que inaugurou a filosofia da história e regeria o pensamento europeu nos mil anos seguintes.

A idéia de que se pode tirar lições diretas do passado não é aceita. O que a história pode é fornecer uma perspectiva de como lidar com problemas a partir da reação a situações anteriores semelhantes. Se se tem alguma compreensão de como os vários fatores externos alteraram nosso passado e presente, pode-se obter melhores resultados quando viermos a lidar com fatores semelhantes no futuro.

Estas considerações sobre a História seriam aplicáveis também à História da Medicina.  Esta é antes de tudo história, uma disciplina da História. Mas, seria um erro pensar que a mesma é de interesse apenas para historiadores, e não para médicos. História da Medicina é também medicina, uma forma de abordagem para compreender melhor a própria medicina. É do conhecimento comum que um dos melhores métodos de expor um assunto é o método histórico. Abordar uma questão a partir do momento em que ela nasce, compreendendo as circunstâncias que a originaram; seguir sua evolução; conhecer os fatos e as razões que apóiam ou contradizem as diversas teorias, que sobre ela foram emitidas, é uma ótima maneira de compreender a questão.  Como afirmou Aristóteles (384-332), entendem-se melhor as coisas e os conceitos quando se tem uma visão clara de como se formaram.

A História da Medicina nos ensina de onde viemos, a situação médica presente e em qual direção caminhamos. Se pretendermos realizar nosso trabalho com um plano definido, necessitamos da História como guia. Não é por acaso que todos os grandes líderes da arte de Hipócrates, inclusive o próprio Hipócrates, valorizavam o estudo da História da Medicina. Segundo Littré (1801-1881), não existe nada na mais avançada medicina contemporânea cujo embrião não se encontre na medicina do passado.  Assim, não se pode compreender a medicina atual de forma precisa e profunda se ignorar a evolução do conhecimento médico, pois existe uma unidade histórica do pensamento médico, sendo necessário conhecer o caminho percorrido se se deseja compreender os conceitos presentes.

A principal utilidade do estudo da História da Medicina é para compreender melhor a própria medicina, dominar suas técnicas, sua organização e suas idéias básicas. Este estudo é um poderoso auxiliar para compreender melhor a perspectiva da medicina, sua evolução e suas tendências. Como observou Bergson (1859-1941): “o espírito humano está feito de tal modo que só começa a compreender o novo quando procura compará-lo com o antigo”. Por isso afirma Goethe (1749-1832), “nada sabe de sua arte aquele que lhe desconhece a história”.

Afirmar a importância da História da Medicina é afirmar a importância da própria medicina. A imagem que o médico tem do passado de sua profissão influencia seu pensamento e, portanto, sua ação. Um médico sem nenhum conhecimento de História da Medicina pode tratar com sucesso seu paciente. Entretanto, quando sua ação é dirigida a um grupo de indivíduos, ou quando esta ação deve ultrapassar a simples interferência técnica na biologia de um indivíduo, ele  necessitará de conhecimentos históricos. O sucesso de sua ação poderá depender da correta apreciação dos fatores sociais, econômicos, religiosos e filosóficos que determinam a situação. Esta apreciação pode ser adquirida somente como resultado de análise histórica.

A História da Medicina mostra como o conceito de uma enfermidade, sua etiologia e seu tratamento, prevalentes em um momento dado, podem ser substituídos por outros melhores. Esta noção da transitoriedade da verdade científica educará o médico no espírito independente e crítico tornando-o preparado para assimilar as mudanças, as novas verdades que na medicina ou na sociedade se desenvolvem.

O curso de História da Medicina durante a graduação fará ao aluno perceber que, com sua formatura, será inserido em uma das mais antigas e respeitáveis atividades humanas e estará integrando uma longa corrente, da qual fazem parte grandes homens que realizaram inestimáveis contribuições para o progresso da Humanidade. Este curso mostrará também ao aluno grande galeria de modelos de dedicação aos doentes e tenacidade nas pesquisas nos quais poderá se espelhar. Finalmente, o estudo da História da Medicina aprimora a cultura geral do estudante, pois a mesma é parte da História Geral da Humanidade e o modo como a medicina é exercida reflete o grau de desenvolvimento científico, tecnológico e cultural de um povo.

A História da Medicina, em sua tríade conceitual, – histórica, filosófica e ética, – constitui disciplina fundamental à cultura e completa formação da mentalidade médica.  Ela é indispensável para aquele que não se contenta em ser mero profissional de uma técnica e que aspira à dupla perfeição: do homem culto e do técnico intelectualmente ambicioso. 

A História da Medicina é fundamental também para a própria medicina. Como afirma Littré, “se a ciência médica não quer ser rebaixada à condição de ofício, deve ocupar-se de sua história e tratar convenientemente dos velhos monumentos que lhe foram legados pelo passado”.

A História da Medicina não é matéria apenas para a História, um setor da história da civilização, mas é também medicina, uma forma de abordagem dos problemas da medicina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.        Hippocrate. De l’ancienne médecine. In Littré E.Oeuvres complètes d’Hippocrate. J B Bailliere, Paris, Vol 1, 1839.

2.    Le Clerc D. Histoire de la médecine, où l’on voit l’origine et le progrès de cet art. Genève, 1696.

3.   Vico G. Pincípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1974. Tradução de Prado ALA.

4.    Sprengel K. Versuch einer pragmatischen Geschichte  der Arzneykunde. Halle, 1800-1803.

5.    Carr EH. What is history? London: Penguin Books, 1990.

6.    Sigerist H. A history of medicine. Oxford: Oxford University Press, 1979.

7.    Salles P. História da medicina no Brasil. Belo Horizonte: Editora G. Holman Ltda., 1971. 

8.   Salles P. Notas sobre a história da medicina em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Edições Cuatiara, 1997.

9.    Santos Filho L. História Geral da medicina brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1991.

10.  Lacaz CS. Vultos da medicina brasileira. São Paulo: Editora Helicon LTDA, 1963.

11. Bloch M. Apologie pour l’histoire, ou métier d’historien. Paris: Armand Colin, 1997.

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